Veganismo é rejeição da animalidade humana
o veganismo é uma revolta contra a sua própria carne, uma recusa da animalidade humana.
Na melhor tradição ascética, o veganista submete-se a mortificação da própria carne ao recusar a carne e os derivados dos animais não-humanos. Primeiro há o prazer no sacrifício - o prazer em não ter prazer - e no heroísmo de vencer as tentações de se entregar aos próprios desejos e impulsos atávicos. Com o tempo, os tormentos do martírio auto-infligido serão substituídos pelo asco ao anterior objeto de desejo. O tormento se transforma em ascese, como forma mística e espiritual, e se manifesta como filosofia na ojeriza moral ao mundo carnívoro. É equivalente ao processo da repulsa ao sexo, o mesmo histerismo, a mesma exaltação moral, que começa no sacrifício e termina por comprazer-se na própria mortificação.
Gostamos de ideias fortes que nos deem segurança e que nos enalteçam moralmente. Buscamos uma confiança e rigor sobre como devemos agir e como devemos viver. Amamos o tom seguro, firme de uma ideologia totalizadora que revele a verdade (ou alguma verdade importante) e que regule com poucos dogmas a nossa vida. Rezar tantas vezes ao dia, ir a missa, pagar o dízimo, não comer carne, abster-se de cigarro, drogas, sexo.
Tudo pode ser religião, ou seita (como gostam de chamar os americanos): veganismo, crossfit, marxismo, olavismo - ideias totalizadoras que professam um absoluto, que organizam não apenas a nossa mente, mas o nosso dia-a-dia e, principalmente, que controlem o nosso corpo - este touro indomável e imprevisível.
O veganismo é como toda boa e grande religião: pretende regular da boca aos intestinos do crente. Começa pela mente e vai colonizando cada átomo do corpo. O fiel veganista diria que ocorre o contrário: a sua fé na verdade o descoloniza da "cultura carnívora". Para ele, tudo é cultural (e/ou econômico, dependendo do grau de marxismo, mesmo que iletrado, do fiel).
Os argumentos de Peter Singer sobre o sofrimento animal são bastante convincentes - e me convenceram, apenas não mudaram minhas ações e continuo comendo animais não-humanos. Porque apesar de concordar com Singer sobre o sofrimento de seres sencientes, Singer os chama de "pessoas não-humanas". Tal humanismo estendido aos animais é uma forma de antropomorfismo injustificado, um wishful thinking, uma utopia, um humanismo estendido aos animais não-humanos. E Singer sequer discute o humanismo implicado na palavra pessoa, ou seja, toma como aceito, como um pressuposto ético, o próprio humanismo.
Depois do humanismo, o humanismo só poderia tentar superar-se, tentando ultrapassar e transcender o próprio antromomorfismo. Como? Por evidente, ainda que não declarada, superioridade moral. O que leva a tentativa de superar o humanismo ao triunfo do próprio antropocentrismo.
O veganismo só pode existir em sociedades ricas e afluentes, com o excedente nutricional que permita recusar a ingestão de animais. Ou, claro, entre ascetas - os atletas da espiritualidade, heróis do sacrifício, narcisistas da mortificação sempre sacrificando o próprio desejo para magnificar o próprio Eu.
Comer um animal é uma forma muito animal de se relacionar com a natureza. O que pode ser mais íntimo, sensual, e carnal, do que o canibalismo imposto pela natureza a tudo que vive? Comer um animal é transformar-se nele mas, principalmente, comer outro animal é reconhecer-se também um animal, dentro da cadeia de vida e morte a que todos estamos submetidos.
Evitar a ingestão de um animal é uma forma higiência, esterelizada, espiritualizada, de rejeitar o animal que somos. Nos tornamos aquilo que ingerimos, átomos e células se misturam. O veganismo não seria, portanto, um transumanismo no que ele tem de Übermensch, de tentativa de superar a humanidade em direção ao além-do-homem, e sim um transanimalismo, isto é, um platonismo, um idealismo que se pretende não animal, não-físico. Na rejeição da própria animalidade está o ódio a si mesmo, o asco à nossa condição animal.
Espiritualismo estribado numa metafísica religiosa laicizada, o veganismo não é a rejeição do animal que ele pretende - ao antropomorfizá-lo - rejeitar. Seguindo a tradição idealista e espiritualista platônica, o veganismo é uma revolta contra a sua própria carne, uma recusa da animalidade humana.