John Zorn
Revoltoso e frequentemente turbulento, com margens plácidas em alguns de seus leitos mais aprazíveis, o caudaloso e torrencial John Zorn é um rio que desconhece estação de seca - ou mesmo estação de chuva ou qualquer outra estação. Lançando em média um álbum por mês no próprio selo Tzadik, está sempre chovendo no ensolarado e fecundo óasis musical do compositor nova-iorquino. Difícil - para nós, ouvintes - é a colheita: como nenhum de seus discos se encontra nos aplicativos de música, colhemos os restolhos, ainda assim abundantes e copiosos, através do youtube ou da pirataria.
Zorn tem um método de trabalho simples: “eu encontro uma pessoa que eu julgo fantástica; criamos, então, uma amizade e eu escrevo música para ela. Não fico esperando um patronato, não peço ao governo ‘por favor, me dá dinheiro’ - eu vou lá e escrevo. Eu tenho um amigo, escrevo para este amigo. E aí já temos uma performance, um show”. O objetivo, pretende Zorn, é levar os amigos músicos ao seu LIMITE, ao que eles achavam impossível de realizar - mas que, ao fim, executam.
Minhas partituras são plataformas para a criatividade do intérprete.
Erik Satie teria dito: eu não escrevo música, eu cago música. O produto, como sabemos, não era excremento, era ouro puro. Zorn é parecido: sai pela rua, esbarra num amigo, ou num possível amigo, e no seu apartamento, que ele considera um dispositivo para a criatividade, abre a torneira musical. Excitado, cria, cria, cria. É uma baleia imortal, esguichando como nos famosos hidrantes que assistimos nos filmes em NY. A música de Zorn, vertendo ininterruptamente, transcorre em relação com as pessoas, o tempo todo. Toda relação estimulante gera uma nova composição. Hic et nunc e ad infinitum.
Zorn é um maximalista. Ao invés de excluir, inclui tudo: trilhas de filmes e desenho animado, rock, punk, música de vanguarda, jazz. Para ele, a tradição não é um dogma - é uma comunidade de espíritos vivos com quem dialoga. Faz música klezmer com a inventividade free de um Ornette Coleman e aditivado com o ímpeto energético de um roqueiro. A tradição é o permanente convite à transgressão e à transcendência, declara, muito afinado à maravilhosa divisa atribuída à Mahler :
Tradição não é o culto às cinzas; é a transmissão do fogo.
Zorn procura quatro qualidades que, para ele, se encontra em toda grande música:
Honestidade
Imaginação
Técnica
Catarse
Tudo isso, claro, ouvimos e vivemos em sua criação. Mergulhados nestas perigosas e turbulentas águas, podemos nos atirar em qualquer de suas praias e nos banhar em qualquer altura de seu leito - a arte é um laboratório vital onde podemos experimentar tudo, como assegura o aforismático pulo no abismo garantido por uma metafórica rede de segurança.
Alguns de seus leitos são plácidos, outros, os mais frequentes, agitados. Mas hospitaleiros a quem se arrisca ao deleite e aos prazeres mais exigentes de uma arte desafiadora.
É impossível acompanhar o seu ritmo de composição, mas a quantidade não diminui a qualidade, embora, obviamente, percebamos algum estilo. Algum estilo, porque tão poliestilístico é este pervertido polimorfo que já tocou com o baterista do Slayer e mantém grupos de death metal, fez música de Morricone em The Big Gundown, judeu praticante do que chama de cultura judaica radical e ao mesmo tempo compondo música litúrgica católica inspirada em Francisco de Assis, como Nove Cantici Per Francesco D'Assisi, ainda assim algum estilo, marca autoral, vícios e manias, reconhecemos no meio de tão vasta produção.
Para compor já usou da teoria dos jogos, uma espécie de aleatoriedade dadaísta, como na época de Cobra, Spy vs Spy, Spillane e Naked City. E mudando conforme o contexto e as amizades, utiliza os mais diferentes métodos, conforme a necessidade e o intérprete endereçado da obra. Amontoam-se os discos com o sempre experimental Bill Laswell, Pat Metheny, Bill Frisell, disco de canções para Petra Haden (a filha de Charlie), Julian Lage etc etc.
Zorn estava no antípodas do jazz institucionalizado e conservador representado pelo Lincoln Center. Os anos em que o tradicionalismo e o racialismo de Wynton MArsalis e Stanley Crouch ditavam as regras já estão desaparecendo. O fusion, o rock, afrofuturismo, o funk, o Miles de On The Corner e seu groove infinito, toda a música planetária se refundiram no jazz. Ele permite tudo - Abaixo o fundamentalismo musical.
Zorn nunca mudou, porque, amando a vida mais do que as ideias, e mais a música do que as ideias fundamentalistas sobre música, sempre foi um rio oceânico de música, em permanente transformação heraclitiana.
O mundo é que era careta demais pra ele. Agora, com toda a música nova e excelente que temos a disposição, Zorn aparece como o que sempre foi: um artista inclusivo, abrangente, o gênio total, sem preconceitos, além de gêneros e estilos.
Individualista radical, Zorn é muito generoso, doando tanta música aos inúmeros amigos. Difícil é chegar ao mundo dos ouvintes. Uma boa oportunidade, para escutar o que está fazendo agora, é ouvir os seus OITO grupos que se apresentaram no festival de música mais experimental e variado que eu conheço, o Big Ears, no Texas. O programa é Jazz Night in America, que esteve no Big Ears e gravou o fenômeno. O programa, distribuído pela rede pública americana NPR e apresentado pelo baixista Christian Mcbride, é composto por entrevistas, depoimentos e entremeado por uma música completa de cada grupo. Escute aqui
New Masada Quartet
John Zorn, alto saxophone; Julian Lage, guitar; Jorge Roeder, bass; Kenny Wollesen, drums
Songs for Petra
Petra Haden, vocals; Jesse Harris, acoustic guitar; Julian Lage, electric guitar; Jorge Roeder, bass; Kenny Wollesen, drums
Brian Marsella Trio
Brian Marsella, piano; Trevor Dunn, bass; Kenny Wollesen, drums
Simulacrum
Matt Hollenberg, guitar; John Medeski, organ; Kenny Grohowski, drums
Stephen Gosling
Stephen Gosling, piano
Chaos Magick
Matt Hollenberg, guitar; Brian Marsella, Fender rhodes; John Medeski, organ; Kenny Grohowski, drums
Heaven and Earth Magick
Sae Hashimoto, vibraphone; Stephen Gosling, piano; Jorge Roeder, bass; Ches Smith, drums
Electric Masada
John Zorn, alto saxophone; Bill Frisell, guitar; Julian Lage, guitar; John Medeski, organ; Brian Marsella, piano; Trevor Dunn, bass; Kenny Grohowski, drums; Ches Smith, drums
Quando eu era jovem eu amava ter uma banda e tocar em 15 cidades.
Hoje eu sou velho: prefiro ter 15 bandas e tocar com todas em uma cidade só.
John Zorn