Joe Frank: Cinema para os ouvidos
O programa de rádio This American Life, lançado em 1995, tornou-se uma espécie de modelo de storytelling para boa parte dos podcasts que vêm fazendo sucesso nos últimos anos. O criador da série é o reverenciado Ira Glass, mestre da nova geração de podcasters. Para criar seus documentários radiofônicos de enorme repercussão, Glass inspirou-se no que aprendeu quando trabalhou na NPR, a rede pública de telecomunicações americana. No final dos anos 1970, Glass foi assistente de um idiossincrático e original criador da arte radiofônica chamado Joe Frank.
Joe Frank (1938 - 2018) é um nome tão ordinário quanto Zé da Silva - a máscara perfeita para um homem comum. O pseudônimo pertence a um autor pouco conhecido do grande público, mas indiretamente responsável por toda a revolução da cultura radiofônica impulsionada pelos podcasts. Amalgamando a literatura e o rádio, Joe Frank criou o cinema para os ouvidos.
Foi das experimentações de Joe Frank que Ira Glass tirou inspiração para seus documentários.
Um paradoxo: Frank inventou um ficção radiofônica assustadoramente realista, sem ficar famoso, sempre restrito a um público cult e marginal. Ira Glass ficou famoso e se tornou o mestre da nova geração de storytellers por fazer documentários que parecem ficção. Usou os recursos estilísticos de Joe Frank adaptados a uma linguagem mais palatável ao público médio. As narrativas de Joe Frank são sofisticadas, mas ao mesmo tempo udigrudi. Grotescas, escatológicas, niilistas, cimentadas com humor bizarro, tingidas por angústia, desesperadas demais para se tornarem mainstream. Joe Frank é um gênio narrativo.
Depois de deixar Nova York no início dos anos 1980, Frank se estabeleceu na rádio KCRW, uma ousada estação experimental com sede em Santa Mônica, na costa da Califórnia. Seu programa era transmitido para todo o país, mas nunca atingiu um grande público, mantendo uma aura cult junto a sua fiel audiência. Frank foi colega de faculdade de Francis Ford Coppola, que tentou, assim como vários outros diretores de cinema, adaptar em película algumas de suas narrativas. Martin Scorsese criou o seu maravilhoso e alucinado Depois de Horas (After Hours, 1985) a partir de uma narrativa de Joe Frank. Sem creditá-lo.
Produzidos dos anos 1970 até sua morte, em 2020, os programas de Joe Frank exploraram diferentes linguagens: dramas interpretados por atores, conversas com amigos, improvisações a partir de argumentos pré-roteirizados, telefonemas. Em um episódio que ficou famoso, Frank telefona para todas suas ex-namoradas para cantar um velho standard de jazz.
A mistura de ficção e não-ficção é permanente. Frank gravava todas as suas conversas, com amigos e desconhecidos, na sala de casa, nos bares ou pelo telefone. Usava as gravações diretamente nos programas ou as recriava em seus roteiros, inserindo trechos em suas histórias ficcionais. Quando dirigia atores, o realismo era chocante, frequentemente obsceno, tamanha a intimidade com que penetra nos nossos ouvidos. Além das gravações em estúdio, era muito comum que peças fossem registradas através do telefone - falsas ligações de ouvintes ou improvisos a partir de um argumento.
O formato que me parece mais marcante e definidor são os seus monólogos e solilóquios. Sua voz é uma invenção, cujo efeito era resultado de uma degradação sonora proposital. Frank gravava primeiro em um sistema Dolby e depois transmitia em um aparelho de som mais simples, gravando essa versão final em fita de rolo comum. O efeito é imediatamente reconhecível: um timbre autoral, uma assinatura vocal. Quando ouvimos Joe Frank é sempre três horas de uma madrugada escura e fria - mesmo que seja três da tarde de um dia ensolarado de verão.
A degradação do Dolby, regravada em fita ordinária, emprestava uma profundidade rascante a sua voz de fumante alcoólatra decadente. Sua voz parece vir de dentro da nossa cabeça, graças a outro recurso determinante: o seu uso muito particular da música. As trilhas sonoras de seus monólogos eram, em geral, um loop extenso de algum trecho (sample) de rock, jazz ou música ambiente. O efeito era de uma música minimalista de Steve Reich ou Brian Eno, sublinhando, em forma de mantra, suas narrações. Hipnótico, de certo modo entorpecente. A ideia do rádio como um filme para os ouvidos, em que o cinema é uma projeção ocorrendo dentro de nossa mente, atinge com Joe Frank sua máxima expressão.
Tão realistas eram suas peças radiofônicas que, ao longo de sua carreira, ocorreram inúmeras situações que lembram a célebre transmissão de A Guerra dos Mundos, por Orson Welles, em 1938 - quando ainda era comum que os ouvintes, mesmo entre o público sofisticado da rede pública americana, não percebessem a ficcionalidade da transmissão, telefonando para a rede local para denunciar a morte de um cachorro ou o assassinato de um personagem ainda durante o programa. Nas peças com atores, tudo soava documental, longe do que entendemos por rádio-teatro.
Grotesco, engraçado de forma esquisita e bizarra, assustador, em um permanente clima de noir absurdo, Joe Frank constrói pesadelos realistas, com paraísos esparsos, ilhas de beleza em meio a um oceano de desespero. Suas histórias tem laivos do existencialismo camusiano, do absurdo kafkiano e uma abordagem provocadora parecida com a do cinema da nova Hollywood.
Em uma de suas últimas entrevistas, Frank afirmou que a revolução do podcast era um grande banquete sobre uma mesa servida por ele - mas ninguém conhecia seu nome.
Alguns links para mergulhar no universo de Joe Frank
https://www.youtube.com/c/JoeFrankOfficial
Programas disponíveis na KCRW, rádio pública em Santo Monica, Califórnia, EUA
https://www.kcrw.com/culture/shows/joe-frank-return-engagement
Ira Glass sobre Joe Frank
https://radiolab.org/episodes/voice-your-head-tribute-joe-frank
https://www.thirdcoastfestival.org/feature/these-are-a-few-of-ira-glasss-favorite-things