Existe um paradoxo no excesso de oferta. Acalentamos a ideia bastante comum de que com mais opções seríamos mais livres, mas parece que o efeito é o contrário: ficamos paralisados, menos satisfeitos e mais ansiosos. The Paradox of Choice - Wikipedia
Nas plataformas de filme, mais do que nas de música, ficamos horas navegando sem saber o que escolher. É uma situação conhecida por todos nós, semelhante à que sentimos em um restaurante com uma lista extensa de pratos. Conheço um que oferece o cardápio em uma encadernação - a gente sai pra comer e se divertir mas recebe um livro, o menu. Quase perguntei: posso levar pra casa, estudar e voltar na semana que vem com o meu pedido?
Por isso não assino mais nenhum streaming de filmes. Uso o netflix da família, sem muito entusiasmo - o catálogo diminui, há poucas opções de filmes clássicos, menos ainda de grandes diretores do passado.
Há muitas coisas boas ali, porém, que assisti ao longo de 10 anos: a série A Sete Palmos, elejo entre as melhores da nova era (pós-Sopranos, segundo os críticos), ao lado de Breaking Bad e Mad Men. O Netflix também produziu bons documentários, como alguns de Herzog, o maravilhoso Rolling Thunder Revue, de Scorsese, e um dos mais impressionantes que já vi na vida: Wild Wild Country, sobre Osho e a comunidade rajneesh no Oregon. O novo Ripley, lançamento recente, é muito bom, mais soturno que a adaptação de Minghella com Matt Damon, também disponível na plataforma.
De todo modo, o caso é que este é um modelo insustentável: com cada empresa disponibilizando um catálogo diferente de filmes e seriados, fica impossível, tanto financeira quanto psicologicamente, manter várias assinaturas. O ideal, para mim, é o modelo do youtube ou do vimeo, em que se paga por unidade para assistir ao filme que se quer. É possível alugar filmes nesses saites, o problema é que a oferta é muito pequena. O youtube praticamente se restringe a filmes americanos - que são ótimos, mas o mundo cinematográfico é grande. É um mundão grande…só que cheio de porteira.
Recentemente quis assistir a alguns filmes de Paul Schrader, para comparar com o recém lançado Jardim dos Desejos. No Youtube, por seis reais, aluguei O Gigôlo Americano. Mas se quisermos assistir a um Fellini, um Antonioni, estamos fodidos.
Eu já dei alguns passeios no Belas Artes à La Carte, ótimo saite brasileiro com filmes de grandes diretores, e usei o MUBI por algum tempo. Tudo bom tudo legal, mas todos com limitações - o que tem num não tem no outro e alguns filmes são inencontráveis em todos eles.
Na semana passada, por exemplo, me bateu uma saudade e quis rever The Commitments. Procurei e descobri que não está disponível em nenhuma plataforma, e o dvd, fora de catálogo, está custando 250 reais no Mercado Livre. E é o Alan Parker, mais mainstream impossível. Outro: semana passada li uma reportagem acerca do lançamento mais recente de Werner Herzog, O Fogo Interior: Réquiem para Katia e Maurice Krafft, sobre o casal de vulcanólogos, que estaria disponível apenas na plataforma Aquarius.
Aquarius!? Que carálius seria isso?
Outra plataforma de streaming, por supuesto. Até quantas, Catilina, até quantas plataformas de streaming pode nossa atenção e nosso querido bolso suportar?
Para assistir a filmes diferentes teria que assinar dezenas de plataformas, cada uma com um catálogo diverso. Não tenho dinheiro nem tempo para administrar uma vida com tantas opções e morreria ansioso escolhendo, tentando decidir ao que assistir. Esse modelo vai falir, ou irão criar grandes fusões nas plataformas, como a que a Amazon tenta fazer, vendendo assinaturas dentro do Prime para o Mubi, Star etc. A Netflix, em modo semelhante, já estabeleceu parcerias com outros canais, como a HBO de A Sete Palmos, anunciando até que pretende ter negócios com a Globo, coisa que li em notícia recente.
Qual é a melhor plataforma, então? A sala de cinema. Além da maior qualidade de imagem e som, a escolha se reduz ao que está em cartaz, o que é bom - lembremos do paradoxo da escolha e em como o excesso de opções nos deixa ansiosos e insatisfeitos - e assim não desperdiçamos a vida zapeando à toa.
Em Porto Alegre temos o privilégio de poder desfrutar de duas cinematecas programadas por gente que entende do riscado e exibe ótimos filmes: a Capitólio e as salas da Casa de Cultura Mario Quintana - que sofreu na última enchente, com muitas danos materiais, mas que esperamos volte a funcionar em breve.
Estávamos numa colheita realmente excelente de filmes até que o dilúvio caísse sobre nós: assisti, todos na cinemateca Paulo Amorim da CCMQ, ao crítico, debochado e sentimental filme argentino Puan; ao bonito e romântico filme coreano Vidas Passadas; também romântico ao seu modo esquisito e engraçado, Folhas de Outono, de Kaurismaki; e a continuação de Caro Diário e Aprile, de Nanni Moretti, O Melhor Está Por Vir, um sol de esperança nos atingindo em sessões lotadas. Além do maior sucesso do ano na CCMQ: Dias Perfeitos, um filme muito japonês do alemão Win Wenders, taoísta no seu apreço pelos atos do cotidiano, uma declaração de amor ao cinema de Ozu.
A Capitólio combina lançamentos com mostras temáticas, seja de filmes clássicos ou em recortes específicos. Depois das enchentes, a sala ofereceu uma mostra dedicada ao sentido comunitário, com filmes que tratassem da relação entre as cidades e as pessoas, seus problemas e alegrias, e agora, enquanto escrevo, exibem documentários franceses e filmes de Jaques Demy.
Na última sexta-feira, 21 de junho, o Projeto Raros apresentou Circuito Fechado (Circuito Chiuso, 1978), telefilme realizado para a RAI pelo diretor Giuliano Montaldo, mais conhecido pelos excelentes Sacco & Vanzetti (1971) e Giordano Bruno, ambos protagonizados por Gian Maria Volonté, ícone do cinema político italiano.
Circuito Fechado se passa nos anos 70, em Roma - um homem é morto a tiros na sala de cinema, durante a exibição de um filme de faroeste espaguete protagonizado por Giuliano Gemma. As portas do cinema são trancadas e a polícia é chamada para investigar. Ao reencenarem o crime durante a cena do duelo projetado na tela, um tiro é disparado na mesma cadeira do primeiro espectador assassinado. O roteiro é vagamente inspirado no conto A Savana, de Ray Bradbury. Com apresentação de Cristian Verardi, a sessão marcou o lançamento da programação da 11ª edição da mostra A Vingança dos Filmes B.
Circuito Fechado me surpreendeu, com uma história sobre um filme que invade a realidade da sala de cinema, antecipando A Rosa Púrpura do Cairo, mas com um teor mais crítico e político, a fantasia se tornando mais real que o real, a violência do cinema atingindo, de verdade, os espectadores. O filme é um suspense magistralmente realizado por Montaldo.
Salas de cinema culturais, entretanto, em geral encontram-se apenas em algumas capitais, isto é, constituem um privilégio dentro da realidade brasileira. Para quem mora no interior, nas raras cidades com cinema, o espectador é refém das besteiras mais comerciais e estúpidas, como os super-heróis e sabe-se lá que outras ignomínias. Tem-se que recorrer, nesses contextos, ao cinema em casa mesmo. E volta o problema: qual aplicativo usar?
A plataforma do Sesc talvez seja a melhor de todas: entra-se ali sem necessidade de cadastro algum e não se paga nada. O catálogo varia a cada tanto, e alguns festivais que ocorrem no mundo real - pessoas em salas de cinema - também disponibilizam os filmes para serem assistidos em casa. No último mês, havia uma mostra em parceria com a embaixada suíça e o In-Edit, festival de documentários musicais.
Na SescDigital tem alguns Fellinis, Bergmans, Louis Malle etc. Há também uma bela entrevista com Eduardo Coutinho, em que sua equipe inverte o jogo e entrevista o maior entrevistador da história do cinema brasileiro. O propósito era descobrir o que Coutinho pensava sobre a arte do documentário, mas o resultado acaba sendo um depoimento tão terno como os que testemunhamos em seus filmes, como Edifício Master, e terminamos por ouvir e saber como Coutinho pensa não apenas o cinema, mas a vida.
O In-Edit no ano passado saiu da capital paulista pela primeira vez e veio fazer uma edição na Cinemateca Paulo Amorim na CCMQ em Porto Alegre, apresentando bons filmes sobre música, entre eles Fausto Fawcett na Cabeça e um que me comoveu muito, Music For Black Piegeons, sobre uma turma da ECM que acompanha o guitarrista Jacok Bro em diferentes projetos, músicos como Jon Christensen, Andrew Cyrille, Bill Frisell, Joe Lovano, incluindo Lee Konitz e Paul Motion, que viriam a morrer logo depois das filmagens.
Na edição deste ano, estão disponíveis no SescDigital filmes sobre a dupla Luli e Lucina (aquela que o Secos e Molhados gravaram, em Fala e O Vira), sobre Arrigo Barnabé (lamentavelmente o filme é um porre, uma espécie de vídeo-arte sobre a obra do compositor, uma verdadeira crocodilagem artística em nível bienal de picaretagem), outro sobre Luiz Melodia, um documentário sobre sintetizadores etc.
Amigos, continuamos no próximo texto.
Um abraço,
Juliano